Postado por

30
nov
2023

Patinho feio – O conto

O conto traz a história de um cisne que foi chocado, por engano, por uma pata. Aquele ovo era o mais diferente, foi o mais difícil de chocar e de dentro dele saiu uma criatura muito feia aos olhos daquela família de patos. Por ser um patinho feio e diferente, ele era constantemente atacado e atormentado pelas outras criaturas da fazenda. A mãe pata se esforçou para protegê-lo durante um tempo, mas estava cansada de defendê-lo, porque, no fundo, ela o via como um grande engano, até que um dia deixou escapar seu desejo mais íntimo: “– Como eu gostaria que você fosse embora!”.  Foi então que aquele patinho feio, que já era tão infeliz, decidiu fugir.

Nas suas andanças o patinho feio se meteu em apuros em suas tentativas de se enturmar, sempre sendo maltratado ou desdenhado. Mas seguia em frente, buscando que as coisas fossem melhores mais adiante. Houve, no entanto, um dia em que ele avistou as aves mais lindas que já tinha visto na vida sobrevoando o céu. Ficou tão encantado e sentiu um amor tão grande que não entendia.

Como o inverno rigoroso estava chegando, as águas começaram a congelar e o patinho ficou preso no lago onde nadava. Após ter sido ignorado e zombado por dois patos selvagens foi finalmente resgatado por um lavrador, que o aqueceu em seu casaco e o levou para sua casa. Lá, as crianças queriam pegar o patinho no colo, mas o medo era tão grande que ele fugiu voando para o telhado e, em seguida, escorregou lá de cima dentro do balde de leite e, depois, dentro do barril de farinha de trigo, fazendo com que a esposa do lavrador corresse atrás dele, espantando-o com a vassoura.

De novo, o patinho fugiu, continuando sua saga, de lago em lago e de casa em casa. Ele passou o inverno todo entre a vida e a morte, até que a primavera chegou e novamente ele encontrou aquelas aves lindas que tanto mexeram com o seu coração. O impulso era de se unir, mas o medo de ser rejeitado era tão grande que quando viu as aves se aproximando abaixou a cabeça imaginando que seria atacado.

Foi exatamente neste momento que ele viu seu próprio reflexo na água e, ao invés de ver um pato feio, ele via um grande e belo cisne, como aquelas aves lindas que despertaram seu amor. Por um momento ele teve dificuldade de se reconhecer naquela imagem magnífica, mas acabou compreendendo que, no final das contas, ele não era um pato, e muito menos um patinho feio, mas um cisne deslumbrante. E foi apenas após se reconhecer como este belo cisne, tal qual as aves que admirava, que ele conseguiu se aproximar de seus semelhantes, sua verdadeira família.

O reconhecimento de si - cisne

A dor que nasce com a gente

A sensação de exclusão e rejeição parece nascer com a gente, não é mesmo? E nasce!!! Essa dor nasce e vive com a gente… É uma ferida que nos acompanha e muitas vezes não conseguimos enxergar ou localizar direito, mas apenas sentirEssa dor pode ser contínua ou intermitente, pode ser apenas desconfortável ou tão avassaladora que anestesia…

A forma que essa dor se apresenta depende muito do que vivemos, de como vivemos, revivemos e recriamos nossas feridas de exclusão e de como lidamos com isso.  São inúmeros os fatores que influenciam na dimensão e intensidade desse incômodo, mas a dor existe. Atire a primeira pedra quem nunca sentiu ou não sente a dor da exclusão – nem que seja em alguma área da vida!

O próprio nascimento inaugura em nós a dor da rejeição… Imagine só o quanto deve ser doloroso para um bebê estar em uma caverna quentinha, onde é provido automaticamente de tudo o que necessita, e passar a se sentir apertado e desconfortável até o ponto de, de repente, ser expulso daquele abrigo mágico e protetor?! E, subitamente, precisar puxar o ar por conta própria, sugar o leite por conta própria, ter uma infinidade de estímulos e não estar mais amparado pela contenção do ventre materno. Apesar de natural, não deve ter sido fácil para nenhum de nós… Sim, a dor também faz parte da vida e dos nossos ciclos de nascimento, crescimento e amadurecimento.

As relações e a dor de não pertencer

A vida fora da proteção do “isolamento do útero materno” é marcada pelas relações. Somos seres sociais e, como tais, somos constituídos a partir da relação com o outro, ou melhor, com os diversos outros. É a partir do outro que nos reconhecemos e formamos nossa identidade, através dos pontos de igualdade e diferença, que podem distanciar ou aproximar, criando grupos de afinidades. Naturalmente, somos impulsionados a buscar pertencimento, seja a um grupo, uma comunidade, uma cultura, uma ideia…

O pertencimento gera sensação de conforto, acolhimento, aceitação, bem-estar… Quem não gostaria? Mas, e quando não sentimos isso?  E quando nos sentimos soltos, perdidos, errantes, sem um grupo de afinidade para chamar de nosso? E quando nos sentimos desencaixados até mesmo da própria família onde crescemos?

A família é o primeiro “grande outro” de nossas vidas e embora seja muito importante na formação e estruturação do sujeito, nem sempre vamos encontrar identificação com este grupo. Muitas vezes crescemos nos sentindo alienígenas dentro da própria família… Dependendo de como a família lide com as diferenças, podemos nos sentir isolados quando nos damos conta dessa estranheza, ou, ao contrário, podemos tentar nos encaixar, sacrificando a parte destoante em nós, durante boa parte de nossas vidas.

Vivemos em uma sociedade imersa em uma cultura e transitamos por diversos grupos durante toda nossa vida… Família, escola, faculdade, trabalho, academia, clube, religião e tantos outros… Os grupos são organismos vivos e dinâmicos, que possuem suas identidades próprias, gerando fortes vínculos identitários e de pertencimento com seus integrantes, exercendo importante papel, dentre outros, de estruturar e dar suporte.

Apesar da potente capacidade de expansão da nossa existência, através do senso de pertencimento e identidade, o grupo também é capaz de aniquilá-la, através da alienação de nós mesmos. Isso pode acontecer quando a identidade grupal é tão forte e coesa que não admite divergência alguma. Nesses casos, a diferença é rejeitada e excluída, enquanto a igualdade torna-se forçosa, sufocante e mortífera. É importante ressaltar, no entanto, que as diferenças não são – ou pelo menos não deveriam ser – determinantes para a exclusão de qualquer grupo, pois é perfeitamente possível e legítimo pertencer apesar das diferenças.

Porém, infelizmente, muitas vezes nosso ego é frágil e imaturo demais para afirmar e sustentar as diferenças, nos levando a sucumbir em inúmeras tentativas de nos enquadrar às expectativas alheias e padrões preestabelecidos… Agradando ao outro, aos outros, ao grupo e desagradando a nós mesmos para aplacar a dor de não pertencer.

“Os não selvagens querem coerência. Querem que você seja hoje exatamente a mesma que foi ontem. Querem que você não mude com o passar dos dias, mas permaneça como no início dos tempos.” Clarissa Pinkola Estés

 Do exílio ao encontro (de si)

Essa busca incessante de se sentir incluído a qualquer custo (que sai caro) e atingir um ideal ilusório que traga aceitação, nos exila de nós mesmos. O caminho continuará errante, atrapalhado e penoso enquanto a referência estiver integralmente no outro, principalmente porque dessa forma sequer conhecemos o suficiente sobre quem somos verdadeiramente.

Enquanto não reconhecermos quem somos, estaremos procurando nos encaixar em qualquer lugar e nos iludiremos com qualquer migalha de atenção… Nos rejeitaremos e nos sujeitaremos a qualquer companhia… E sempre veremos os outros grandes demais diante de nós, pequenos demais… E, assim, a dor persiste como ferida aberta e profunda.

A rejeição, por mais dolorosa que seja, cumpre uma função. Ela nos empurra para a busca dos verdadeiros companheiros psíquicos. O problema não é se reconhecer diferente e perceber o desencaixe, o grande problema é tentar se apertar em um lugar que não nos cabe para nos encaixar. É muito pior ficar onde não cabemos, onde não nos afinizamos, do que vagar por aí à procura da afinidade psíquica. Essa busca, apesar de difícil, nos fortalece e nos ensina a olhar mais para quem somos e a reconhecer nosso bando.

Quando temos capacidade de reconhecer o valor de ser quem realmente somos não aceitamos mais abrir mão desse tesouro tão fácil, mesmo que precisemos continuar andando por aí à procura de nossa turma. A busca de nossa família psíquica é, em última instância, a busca por nós mesmos, pois as afinidades de alma só podem ser identificadas se entramos em contato com a nossa própria alma.  E depois que a tocamos, não dá mais para ignorá-la… Precisamos ser fiel a ela… a nós…

Encontros que aquecem a alma

Então, mesmo que a dor do isolamento machuque, precisamos ter persistência e perseverança e seguir em frente!  A busca é o movimento necessário para não deixar que nossas emoções congelem na aridez do exílio, na menos valia e na frustração por não ser acolhido e não se sentir pertencente a grupo nenhum.

É importante nos manter aquecidos e movidos pela esperança de encontrar nossa verdadeira família psíquica e alimentados pela certeza de que esse encontro fará a alma descansar e se expandir.

“Cuidemos aqui das questões íntimas da pessoa rejeitada, pois quando desenvolvemos uma força adequada – não uma força perfeita, mas uma força moderada e prática – para sermos nós mesmas e para descobrir a que grupo pertencemos, podemos então influenciar a comunidade exterior e a consciência cultural com perícia.” Clarissa Pinkola Estés

Apenas quando aceitamos nossa própria individualidade, nossa própria beleza, é que estamos prontos para sermos encontradas pelo nosso bando e reconhecê-lo como tal. O encontro com o outro é muito mais potente quando, antes, encontramos a nós mesmos por que dessa forma o encontro se dá de um lugar profundo e genuíno.

Como você está nesse momento? Paralisado no isolamento congelante ou seguindo adiante?

Sigamos!

Sobre a arte – Mosaico

A linguagem expressiva usada nesta arte foi o mosaico a partir de folhas lisas rasgadas de revistas.

Achei muito pertinente a imagem do conto se expressar nesta linguagem, pois fala muito da integração dos nossos cacos excluídos e rejeitados por aí. Fala também do poder do verdadeiro encontro e conexão entre as partes, que de forma conjunta expressa a totalidade de uma imagem significativa. Além disso, é importante notar que cada caco isoladamente é ausente de sentido, mas quando juntos e integrados são capazes de criar pertencimento entre si e à imagem. Importante destacar, ainda, que o sentido geral do todo só é possível a partir não só da semelhança, mas também da diferença dos diversos cacos. Isso mostra como igual e diferente são atributos igualmente importantes e, portanto, devem ser honrados e respeitados.

Muitas vezes perambulamos por aí em caquinhos, sem integrar as diversas partes que nos habitam. Embora algumas partes sejam aceitas, outras são rejeitadas e excluídas da imagem que imaginamos ou que gostaríamos de ter. Porém, quando incluímos tudo isso como partes que nos constroem, nos sentimos pertencentes a todas essas partes e podemos nos sentir mais inteiros e admirar a beleza da imagem que se forma a partir dos diversos caquinhos.

Para achar nossa verdadeira tribo é necessário reunir nossos diversos cacos psíquicos fragmentados e isolados e reconhecer o potencial de cada partezinha, integrando da melhor forma possível ao todo. É necessário saber identificar e aceitar as semelhanças que aproximam e as diferenças que distanciam e compreender que cada atributo tem um lugar e uma função no todo. Assim, com maior integração e integridade estamos mais inteiros e disponíveis para encontros mais verdadeiros e compatíveis com a nossa alma.

Mosaico reúne, ordena, integra, ressignifica… seja com cacos concretos, seja com cacos simbólicos (afetos, emoções, memórias…)

Não é uma maravilha esse tal de mosaico? Experimenta e me conta!

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