Postado por

22
fev
2023

A vida é uma caixinha de surpresas

A vida está sempre surpreendendo. Às vezes, ela nos surpreende com boas novas, mas nem sempre as surpresas são tão boas quanto gostaríamos. A gente bem que tenta se confortar (ou se enganar) buscando formas de controlar todas as variáveis e tornar tudo o mais previsível possível, mas tentar ludibriar a capacidade da vida nos surpreender é sempre uma tentativa em vão.

A vida sempre se impõe sobre a nossa vontade e acredito que há sempre uma inteligência divina por trás de cada novidade boa ou “puxada de tapete” que a vida dá. Por trás de cada fato inesperado, há sempre uma convocação. No mínimo, uma convocação para a própria vida, ou seja, para viver… talvez não aquilo que queremos, mas aquilo que precisamos.

E é com esta deixa que compartilho a minha mais recente intimação a viver…

A surpresa que saltou da minha caixinha

Recentemente minha mãe fez uma cirurgia que complicou, o que a levou a fazer algumas outras cirurgias. No meio disso tudo, ela teve algumas intercorrências clínicas que provocaram bruscas recaídas em seu período de restabelecimento. Foram algumas internações, umas maiores, outras mais curtas, mas todas exaustivas, entre CTI e enfermaria.

A apreensão foi visita constante. Não só ela… Teve também visita do medo, da angústia, da frustração, da raiva, da indignação. Felizmente, porém, sentimentos como resignação, compaixão, gratidão, fé e confiança vieram ao meu socorro. Tivemos alguns maus momentos, mas tivemos também alguns bons motivos para confiar na providência divina e médica.

Em todo momento sentia muito alívio e gratidão por ela ter ficado em excelentes hospitais públicos, tidos como referências em suas áreas de atuação. Apesar do processo de sucateamento da saúde pública, minha mãe teve atendimentos atenciosos e de muita qualidade por toda a equipe de profissionais de saúde e isso, por si só já me emocionava (valorizemos o fator humano, nossos servidores públicos que, apesar de atuarem em condições adversas, trabalham com coragem e comprometimento).

Desde 30 junho de 2022 temos percorrido essa jornada de muitas emoções (ainda em curso no momento de publicação deste post) . Ela é o personagem principal dessa jornada, mas a família inteira orbita ao seu redor, como coadjuvante neste processo. Foi difícil e exaustivo para todos nós, principalmente nos momentos de maior tensão, mas tem sido também, sem dúvida, uma grande oportunidade de crescimento e desenvolvimento.

Convocação para viver

Momentos muito desafiantes são cruciais. Eles podem te arruinar e derrubar, mas podem também servir de verdadeiros catalisadores para a transformação e o desenvolvimento humano.

Em diversos momentos em que estive acompanhando minha mãe em suas internações tive a impressão de estar vivendo um verdadeiro retiro espiritual. Os trabalhos voluntários, o compartilhamento das acomodações, os horários estabelecidos, as filas para as refeições, as conexões de convivência, os momentos de silêncio, os momentos de ebulição e gritaria interna, os pequenos desafios e provas diárias, a lida constante com as emoções…

E, pensando bem, é mesmo um retiro espiritual, só que da vida real e oficial. O verdadeiro retiro espiritual é aquele que acontece vi-ven-do a vida, as experiências, emoções, sensações e reflexões típicas da vida humana. As experiências vivenciadas em retiros podem ser pequenas preparações, mas a vida real é a grande prova de fogo. Acredito que esse seja o nosso maior e mais verdadeiro retiro espiritual.

Vejo toda crise como um convite a viver experiências de forma intensa. Na verdade é mais do que um convite, é uma convocação… é algo compulsório. São acontecimentos significativos que nos afetam profundamente, mobilizando nossa vida e nossas relações, que nos retiram de nossa rotina e nos empurra para uma série de vivências que não seriam experienciadas de outra forma, em circunstâncias ordinárias e cotidianas.

A vida rotineira parece dar um looping de 360º, fica tudo de cabeça para baixo e, inevitavelmente, as ideias, emoções e sentimentos também ficam uma grande bagunça e confusão. Esses momentos desestabilizam, retiram da zona segura de conforto, provocam certo recolhimento e até mesmo certa solidão.

São momentos angustiantes, que podem ser vividos como algo apenas ruim e doloroso, mas, na realidade, estes mesmos momentos podem oferecer importantes impulsos no desenvolvimento humano. Importantes transformações internas são iniciadas nesse movimento solitário… Parece uma retirada no mundo externo e uma imersão em um mundo interno que fervilha. E, nesse sentido, me parece mais uma imersão espiritual.

A potência da atitude espiritual

É importante frisar que essa retirada parcial e temporária do mundo, para viver aquilo que a vida nos apresenta, seja bom ou ruim, não tem nada a ver com passividade. Mesmo apesar de toda impotência revelada pela situação que se impõe, existe uma atividade silenciosa que transforma essa impotência em potência. É exatamente isso que transforma a situação difícil em um retiro espiritual da vida real ou, melhor dizendo, em uma imersão espiritual. Ou, para ser mais simples: uma vivência espiritual.

Aceitação, resignação e resiliência em nada tem a ver com passividade. Qualquer enfrentamento e transformação da realidade requer esses ingredientes, em certa medida, e uma conduta ativa. Essa atividade, no entanto, muitas vezes não é tão visível aos nossos olhos e, por isso mesmo, muitas vezes a gente duvida de que algo esteja agindo e sendo transformado em nós. Geralmente, essa atividade transformadora se apresenta em processos silenciosos, internos, sutis e lentos, que se desenvolvem com a ajuda da força inconsciente, despertando e convocando partes adormecidas em nós. Isso não se dá de forma objetiva e ostensiva… E talvez esteja aí a sua maior potência e consistência.

Quem nunca passou por isso? Quem nunca se sentiu em um caldeirão de emoções que borbulha fervorosamente? Quem nunca tentou negar ou fugir com medo de não resistir? Situações desafiadoras causam medo e isso é absolutamente humano. Podemos tentar negar ou fugir, mas também podemos buscar enfrentar, lidar, administrar e atender esse chamado de transformação.

Tudo o que vivemos é adicionado no caldeirão e nós podemos observar essa mistura borbulhante e buscar entender se, no momento, o mais apropriado é deixá-la parada para que levante fervura e parte simplesmente evapore, ou se é preciso mexer lentamente para deixar a mistura homogênea ou, ainda, se é o momento de incorporar novos ingredientes e ajustar os temperos. Com o tempo, e com as ações necessárias, pode ser que esse grande caldo, a princípio tão indigesto,  possa ser ingerido, digerido e se reverter em nutriente para a alma.

Podemos ser alquimistas das dores que machucam nossa alma. A vida sempre vai se apresentar (e muitas vezes se impor), mas a grande questão não é o que se vive, mas como se vive o que nos é apresentado.

Viver e (se) transformar

São justamente esses momentos mais desafiadores que rendem importantes reflexões, aprendizados e conexões espirituais. E, se soubermos lidar com isso de forma alquímica, os desafios podem ser revertidos em força interna e sabedoria. E o que podemos aprender diante dessas situações que nos provam? Coisas sobre paciência… confiança… entrega… espera… resiliência… amor…lidar com raiva, angústia, medo, cansaço… Aprender a peneirar aquilo que realmente importa… identificar valores, forças e fragilidades… estabelecer limites e prioridades… desenvolver compaixão e, principalmente, autoamor.

Mas, nos lembremos, contudo, que há sempre outro importante desafio por trás de qualquer situação desafiadora: vivê-la sem que a vida vire SÓ ISSO. É preciso também lidar com os outros aspectos da vida, sempre dentro do possível permitido no momento. Afinal, as situações críticas que a vida nos impõe têm grande poder de sedução e atração e, por isso, elas podem sugar, hipnotizar e cegar.

É necessário que se faça algum esforço para olhar para todos os outros diversos aspectos da vida que estão fora do foco do ponto crítico. É preciso ampliar nosso olhar para que não sejamos reduzidos apenas ao que nos acontece. Somos sujeitos passivos, na medida em que a vida nos sujeita com sua força imperativa, mas também somos sujeitos ativos, na medida em que vivemos isso ativamente, transformando e sendo transformados ao mesmo tempo.

Caixa de surpresas chamada vida

Sobre a arte:

Realizada em 19/02/2023

Material utilizado: lápis de cor aquarelável (predominantemente) e aquarela.

Composição da foto: decoração com resíduos obtidos a partir do apontamento dos lápis

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