Postado por

23
set
2020

Sou muito fã do livro “Mulheres que correm com os lobos”, da Clarissa Pinkola Estés, e alguns capítulos me encantam tanto que tenho vontade de compartilhar. Então, resolvi experimentar com este capítulo (não porque tenha sido o que mais gostei, mas porque só nele tive essa ideia – rs).

A Mulher-esqueleto – o conto

O conto “A Mulher Esqueleto” traz a história de um pescador desavisado que vai pescar em uma área considerada mal assombrada por ser o local onde uma menina foi jogada ao mar, de cima de um penhasco, pelo próprio pai. Ao perceber que fisgou algo pesado, o pescador ficou feliz e repleto de expectativas, imaginando e idealizando o peixão que levaria para casa. Porém, ao recolher a rede, constatou que havia um esqueleto e não um peixe em seu anzol. Ele ficou tão horrorizado que largou o esqueleto e fugiu com o caiaque, mas durante todo o percurso de fuga a mulher esqueleto o perseguia incessantemente. Foi assim até que finalmente conseguisse adentrar em seu iglu, parar, respirar e sentir-se seguro.

No entanto, após se acalmar, ao acender a lamparina deu de cara com o esqueleto amontoado dentro da rede. Com o susto e a pressa de fugir, ele não se deu conta de que, apesar de ter largado o esqueleto, ele permanecia preso nas linhas da rede. Então, de repente, algo mudou e, delicada e vagarosamente, ele foi desemaranhando os ossos da rede, organizou-os, os cobriu com uma pele e dormiu. Enquanto dormia, uma lágrima escorreu dos olhos do pescador, através da qual a mulher esqueleto saciou a sua sede. Em seguida, ela retirou o coração do pescador e se pôs a tocá-lo como tambor e a cantar. Enquanto isso acontecia, a mulher esqueleto começou a ser revestida novamente de carne, voltou a ter um corpo e cantou para que o pescador fosse despido, devolveu seu coração e deitou-se colada a ele. Foi assim que acordaram, abraçados, unidos e enredados, mas a partir de então de um jeito bom e duradouro.

Natureza da vida-morte-vida do amor

A autora, Clarissa Pínkola Estes, ressalta que o conto pode remeter a aspectos dentro de uma mesma psique, mas sugere que sua riqueza fica ainda maior se aplicado aos relacionamentos de amor. Assim, ela analisa e amplia o conto, de forma a traçar um paralelo com as várias fases do amor.

Esse conto fala sobre os ciclos de vida-morte-vida no amor e a necessidade da sabedoria para amar. A mulher-esqueleto simboliza a força da natureza vida-morte-vida e a sabedoria inerente a essa força, que se refere a saber o que precisa morrer a fim de dar espaço àquilo que precisa nascer, numa eterna sucessão de morte e nascimento, que conduz às transformações necessárias. Infelizmente, porém, é muito comum sermos ensinados a temer e a correr da morte, como se ela fosse terrível, excluísse a vida e fosse o oposto dela. Morte e vida, no entanto, são duas faces da mesma moeda, uma não existe sem a outra, uma abre espaço para a outra, elas caminham juntas.

A morte, representada pela mulher esqueleto, não é uma assombração, mas sim um aspecto necessário de qualquer união verdadeira, profunda e duradoura. Ela significa o encerramento de um ciclo, necessário para dar lugar a um novo ciclo, à transformação e ao renascimento. Morte é prenúncio de transformação. Não existe transformação sem morte. Encarar a mulher esqueleto, essa força natural e selvagem do ritmo das coisas, é fundamental para qualquer relacionamento profundo e duradouro de forma a permitir sua permanente construção e transformação através desses ciclos. Afinal, amor e relacionamento não acontecem prontos e acabados, eles são construídos e transformados o tempo todo.

A busca, a paixão e a fuga

Antes de nos relacionarmos é comum nos encontrarmos em um estado de busca no qual muitas vezes nem sabemos exatamente o que procuramos – companhia, conquistas, emoção, parceiro ideal que supra os anseios etc. Após o encontro ocorre o estado de apaixonamento, revestido de inúmeras ilusões, expectativas, fantasias e ansiedade acerca do parceiro e do relacionamento. Quando somos tomados pela paixão somos tomados também por completa cegueira, que nos faz ver apenas aquilo que queremos ver – mas não o parceiro real. Porém, quando a cegueira da paixão cessa, morrem também as idealizações, ilusões e expectativas, bem como o engano de querer tudo e que tudo seja apenas bom e lindo.

Neste momento em que a paixão passa e o parceiro não corresponde mais às idealizações cegamente projetadas nele, surge a frustração e a vontade de fugir, tal qual fez o pescador quando realmente viu o que tinha fisgado. Isso se dá porque não temos condição de perceber que não se trata de fisgar aquilo que não queremos, mas sim da descoberta acidental de um tesouro. O que parece assustador é, na verdade, um tesouro, uma preciosa oportunidade. Esse é um dos momentos em que a mulher-esqueleto aparece no relacionamento, anunciando o término de um ciclo e o início de outro. Para avançar além da paixão, é necessário ir além do concreto e do corpo e adentrar, compreender e se conectar com camadas mais profundas  do outro com quem se relaciona.  É quando começamos a ver o outro livre da cegueira da paixão, além da superfície e das expectativas, é que se abre a possibilidade de um relacionamento de verdade.

Quando a paixão desaparece, é comum que os amantes fujam desesperadamente e tentem se esconder e racionalizar o medo que sentem através de toda sorte de justificativas para não encarar a morte da paixão e os desafios que geralmente ela ocasiona. O que parece uma fuga do relacionamento por medo da intimidade e do envolvimento é, na verdade, uma grande descrença e desconfiança, um medo de se entregar e viver de acordo com os ciclos da natureza selvagem. No entanto, é exatamente o vínculo com essa força, que tanto se teme, que nos fortalece e nos habilita a amar verdadeiramente. O temor da mulher-esqueleto é exatamente o temor de lidar com a força da vida-morte-vida que permeia qualquer relacionamento que avança e aceitar as transformações que ele traz.

O cansaço da fuga

Chega um momento que cansamos de correr e fugir e encaramos a mulher-esqueleto e a desembaraçamos da linha que a mantinha presa. É o momento em que aceitamos as possibilidades, desafios e transformações que o relacionamento de amor envolve. No entanto, não há como adentrar essa fase sem olhar de frente as feridas e enfrentar tudo aquilo que não queremos ver, encarar todas as partes desprezadas e tidas como inferiores e não belas, tocá-las e desemaranhá-las com delicadeza e gentileza, em nós e no outro. O relacionamento íntimo e verdadeiro exige o enfrentamento e aceitação da dor, do sofrimento e do não belo, tanto em nós mesmos quanto no outro, assim como a disponibilidade em ver como isso vai funcionar junto.

“Desemaranhar a Mulher-esqueleto é começar a quebrar o encanto – ou seja, o medo de sermos consumidos, de morrermos para sempre. Em termos arquetípicos, desemaranhar algo é empreender uma descida, seguir por um labirinto, penetrar no mundo subterrâneo ou no lugar em que as coisas são reveladas de uma forma inteiramente nova, ser capaz de acompanhar um processo complexo.”

Essa é uma tarefa que todos aqueles que desejam se relacionar de forma especial devem desempenhar. O medo é natural, mas é preciso ir além dele.

Para ir adiante nessa jornada é necessário também estar disposto a soltar, relaxar e confiar, o que é representado no conto pelo adormecimento do pescador diante da mulher-esqueleto. Segundo a autora, o sono simboliza o resgate do estado de confiança, inocência, deslumbramento e relaxamento, momento que largamos nossas defesas e esperteza e nos entregamos à confiança do espírito e deixamos que a nossa alma realize todas as tarefas necessárias para nós.

A autora afirma que existem dois tipos diferentes de prudência, aquela que é verdadeira, quando o perigo está próximo, e aquela que não se justifica, mas é originada em um ferimento anterior. Esse tipo de prudência, que não se justifica em um perigo real e presente, mas sim em um ferimento anterior, é o que nos torna irritadiços, defensivos e desinteressados mesmo quando gostaríamos de demonstrar carinho e afeto. Muitas vezes as pessoas se veem incapazes de relaxar e descansar na presença do outro, com medo de que o outro se aproveite de sua inocência. Essa desconfiança, embora seja dirigida ao outro, no fundo é uma falta de confiança em si mesmo, uma desconexão com a natureza da vida-morte-vida, uma falta de confiança na natureza da morte. Nesse caso, é preciso aprender a confiar na vida que a morte traz consigo, no começo que o final anuncia e aprender que morte e vida andam juntas e coexistem.

Confiar na natureza da morte dá medo. É natural que seja assim, mas não por muito tempo e não a ponto de nos impedir de viver em função do medo da morte.  Não chegará um momento em que nos sentiremos prontos, é preciso arriscar, questionar o que aprendemos sobre a natureza da vida-morte-vida e dar ouvido aos nossos instintos, pois eles sabem naturalmente sobre essa força.

“Às vezes não existem palavras que estimulem a coragem. Às vezes é preciso simplesmente mergulhar”.

O processo de entrega e o amor

A lágrima que corre dos olhos do pescador representa lágrima de sentimento profundo que rende, despe e admite o ferimento, mas que também proporciona a aproximação do amante. Trata-se de lágrima de paixão e compaixão por si mesmo e pelo outro, de dor, de desejo de conhecimento, mas também de alívio, após a exaustão, derrubada de defesas, exame de si mesmo, até chegar aos ossos, ao mais profundo de si. Através de todo esse caminho percebemos que não é o outro a nossa cura, mas sim nós mesmos e, a partir disso, abre-se espaço para que o outro se aproxime genuinamente. Nesse momento somos capazes de nos olhar por inteiro, nos assumir e de aceitar e cuidar de nossas próprias feridas. Isso também nos torna capazes de ter esse olhar também em relação ao outro e, dessa forma, deixar cair as defesas e as projeções sobre o outro, o que torna a conexão ainda mais verdadeira

O coração, símbolo da essência e centro fisiológico e psicológico do homem, é usado para uma nova criação, para dar vida plena à Mulher-esqueleto. Por mais difícil que isso possa ser, ele existe para ser tocado, para nutrir a força da vida-morte-vida, o que significa adentrar profundamente o mundo dos sentimentos e engrandecer a vida. O tambor e o canto utilizados pela Mulher-esqueleto no conto representam a cura de ferimentos através da criação de uma consciência diferente, um estado de transe, de entrega, de oração. A entrega do coração possibilita a transformação e a criação de vida através da morte, através dele a Mulher-esqueleto se reveste novamente de vida. A força vida-morte-vida possui um ritmo e uma ciclicidade própria.

“Só a soltura, a doação do coração, o grande tambor, o magnífico instrumento da natureza selvagem, é só isso que cria.”

Todas as fases do relacionamento nos ensinam que o amor em sua plenitude é uma série de mortes e renascimentos, uma sucessão de fases e ciclos que se combinam feito uma dança própria do corpo e da alma, que caminham em conjunto. Ao conhecer essa dança, somos capazes de reconhecer melhor o que precisamos em cada fase, recorrendo às curas necessárias para cada situação específica. É requisito dessa dança a fusão da respiração e da carne, do espírito da matéria, do mortal com o imortal.

“É assim que o relacionamento amoroso deveria funcionar, com cada parceiro transformando o outro. A força e poder de cada um são desembaraçados, compartilhados. Ele lhe dá seu tambor do coração. Ela lhe transmite o conhecimento dos ritmos e emoções mais complicados que se possa imaginar. Quem sabe o que os dois irão caçar juntos? Só sabemos que eles se nutrirão até o final dos seus dias.”

O relacionamento é um encontro de duas pessoas feridas em busca de vida, cada uma depositando na outra a responsabilidade de cura de seus ferimentos mais profundos, conforme suas expectativas. No entanto, ele só acontece de verdade quando cada uma consegue assumir e enfrentar suas fragilidades e quando a entrega acontece, sem defesas nem ataques, permitindo a conexão profunda e o conhecimento verdadeiro entre ambas. Não há como prever e planejar um relacionamento – como será, o quanto durará, o que será enfrentado, etc –, pois ele é fruto da interação e transformação entre duas almas, cada qual com seus próprios processos de vida-morte-vida.  Se quisermos mesmo saber o que pode acontecer, há apenas como confiar e se entregar, se tivermos coragem para isso.

Vida e morte na própria psique

No âmbito individual, fisgar a Mulher-esqueleto representa trazer para a consciência aquilo que temos escondido e esquecido nas camadas mais profundas da psique. Significa enfrentar essas dores, desemaranhar uma por uma, e dar vida a partes nossas nunca antes conhecidas. Tem a ver com nos conhecermos em profundidade e nos conectarmos com a força vida-morte-vida, essa sabedoria selvagem e instintiva, e deixar ela ser nossa mestra a nos guiar pelos ciclos, nos dando a sabedoria de fazer morrer e fazer nascer e transformar em nós tudo aquilo que for necessário.

Clarissa sugere que uma forma de entrar em contato com a natureza da vida-morte-vida é se perguntar frequentemente: O que precisa morrer em nós? O que precisa nascer em nós? O que resistimos a deixar morrer? O que precisa morrer para dar espaço para a capacidade de amar? Qual é a parte em nós que tememos? Para que serve isso? O que tememos fazer nascer? São muitas as possibilidades de perguntas que podemos nos fazer no intuito de nos conectar com essa sabedoria selvagem que envolve o ciclo de viver, morrer e renascer.

Bom mergulho para todxs nós! Conta aqui suas reflexões, vou adorar saber!

 

Sobre a arte:

Realizada em aquarela e canetinha

Podcast:

Ouça o podcast “Ouvindo o Feminino”, disponível na plataforma Spotify!  São episódios de conversa sobre os capítulos do livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, de Clarissa Pinkola Estes. A conversa sobre o capítulo da Mulher-Esqueleto já está disponível!

IG:

@florescendoconsciencia

 

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2 Comentários

  • Samara
    01 junho, 2022

    Muito Obrigada ❤⚘️ precisava ler isso!

    • Maria Fernanda
      05 dezembro, 2022

      Fico feliz que tenha servido para você de alguma forma 😍.
      Agradeço me deixar saber disso. 😊