Postado por

20
set
2020

Castrações e imposições

Fomos criados para ser bonzinhos e não para sermos inteiros, não para sermos humanos, não para sermos nós mesmos. A cultura ensina isso, a família ensina isso, a escola ensina isso, as instituições religiosas e em geral ensinam isso e por aí vai… Nos enfiam goela abaixo um extenso manual de sobrevivência social. E por sobrevivência social entenda-se aceitação social. Existem regras para sermos aceitos socialmente e você deve segui-las para não ser mal visto, não ficar isolado, não ser rejeitado.

Crescemos ouvindo orientações, naturais do ponto de vista social, como “não aja assim”, “não fale isso ou aquilo”, “não se vista assim ou assado”, “não seja agressivo”, “não responda”, “não desobedeça”, “não chore”, “não grite”, “não se lamente” e mais uma série infinita de “não isso”, “não aquilo”. Uma lista sem fim de castrações sociais…

Somado a isso, recebemos durante a vida inteira, direta ou indiretamente, uma detalhada cartilha de etiqueta social. Coisas como “seja comportado”, “seja gentil”, “seja educado”, “estude para ser alguém na vida”, “vista-se adequadamente”, “seja espero”, “seja alegre”, “esteja bonito”,  “sorria”, “agradeça”, “aceite o que quer que seja, pois sempre tem alguém em situação pior” e mais um monte de regras incontáveis.

A consequência disso? Um peso enorme de culpa que carregamos indevidamente pelas tentativas frustradas de ter que ser quem não somos. E medo… Outro sentimento que também está sempre à espreita nessa missão de servir ao social. Medo de não ser aceito e punido por não ser o que esperam de nós, medo de não ser amado, medo da rejeição, medo do isolamento, medo do julgamento… Medo, medo, medo! Culpa e medo, instrumentos poderosíssimos de controle social, armas afiadas que nos intimidam e nos mantém reféns, quietinhos e obedientes às regras. É mais fácil controlar quem não dá trabalho, quem não questiona, quem não aceita fácil tudo o que lhe impõem.

Ditadura da gratidão e do pensamento positivo

Outra “ditadura” instaurada atualmente é a gratidão e o pensamento positivo. Mas isso não é bom? Sim, mas até isso deve ser usada com sabedoria e não simplesmente porque está na moda, ou porque precisamos disso para demonstrar valor, equilíbrio ou alguma evolução. Como diz o ditado, “a diferença entre o veneno e o remédio é a dose”. Não temos que agradecer absolutamente tudo a qualquer circunstância e tampouco entrar em estado tal de gratidão como se tudo fosse uma grande dádiva concedida sem levar em consideração o nosso merecimento. O pensamento positivo também é muito importante, não tem como negar. Sou partidária de procurar extrair o lado bom de tudo, mas pode ser que a gente não consiga achá-lo em determinadas situações. E tudo bem.  É urgente compreender que pensamentos negativos, assim como sentimentos negativos, também fazem parte da vida! É a cartilha social (amplamente falando) que lima e oprime esses sentimentos, mas eles fazem parte de você, de mim e de qualquer ser humano que sente. Mas, infelizmente, fomos ensinados a esconder o que os outros veem como feio e inaceitável. Assim, enganamos os outros e a nós mesmos – o pior dos enganos. E, muitas vezes, não nos sentimos autorizados a pensar e sentir certas coisas e nos sentimos mal, errados e inadequados quando acontece.  Mais uma vez, a culpa e o medo… Se eles pudessem nos dizer algo, eles diriam: “limite-se a pensar e sentir o que é autorizado, se não arque com as consequências”. E aí a gente vive uma vida achando que está errado por algo que é natural existir dentro de nós. É preciso naturalizar sentimentos e emoções rejeitados pelo meio social porque eles são absolutamente humanos!

E se você acredita que algo que te acontece está errado ou é injusto? Você pode encarar a situação de várias formas diferentes…  Pode adotar o caminho mais aceitável socialmente, aceitar e se forçar a olhar apenas o lado positivo da situação, se houver, e ainda agradecer porque, afinal de contas, poderia ser pior ou existem pessoas em situação pior e, com isso, simplesmente aceitar, mesmo que seja errado e injusto. É um caminho possível, mas, a meu ver, me parece que seu guia é o medo, a submissão, a ditadura da gratidão e pensamento positivo e a culpa. E, convenhamos, tem um custo em agir assim. Um dia, finalmente, o tapete pode não ser suficiente para guardar tanta poeira e a bomba pode explodir ou, pior, implodir. Outro caminho possível também é sentir raiva e revolta diante da situação, reconhecer esses sentimentos, mas decidir sufocá-los e não fazer nada com isso. Aqui, embora tenhamos consciência das emoções, elas não são colocadas em movimento. Também existe um preço alto, com risco de explodir ou implodir mais cedo ou mais tarde. E, ainda, outro caminho possível, e não menos arriscado, é o de reconhecer a raiva e a revolta e não se calar diante disso, fazer o que estiver ao alcance para mudar a situação e se colocar em movimento no sentido do que você compreende como correto e justo, mesmo que a possibilidade de ação seja pequena. Aqui o risco também é grande, pois você poderá ser mal visto, incompreendido, julgado, isolado e até retaliado, punido ou rejeitado. Porém, apesar de parecer ser o caminho mais difícil e trabalhoso, age-se em prol de algo que se acredita. E eu considero um risco válido, por falar o que pensa, agir conforme sua consciência e ser quem é e não o que esperam que você seja.

É necessário certa dose de rebeldia para transgredir regras que não fazem sentido. É necessário certa dose de raiva para enfrentar e superar determinadas situações. É preciso certa dose de agressividade para se colocar em movimento e defender seus ideais. É necessário certa dose de ousadia, e até petulância, para enfrentar ou provocar mudanças. Pode ser benéfico certa dose de orgulho e egoísmo para encorajar imposição de limites, quando necessário. É necessário permitir certa dose de tristeza para elaborar certos acontecimentos. Pode ser benéfico certa dose de tédio para criar e inovar. É necessário certa dose de confusão para que se busque clareza. É preciso se incomodar para transformar e aperfeiçoar algo. E por aí vai…

Processo de retomada

Acredito que todos nós tenhamos passado por isso e precisamos de certa dose de enquadramento social, afinal, somos seres sociais e vivemos em sociedade. Mas a questão é: Até quando carregar esse peso? Chega uma hora que precisamos pensar pelas nossas próprias cabeças e questionar regras impostas para que não permaneçamos vazios de nós mesmos. Por muito tempo somos preenchidos pelo que a sociedade quer e espera de nós. Mas e nós? O que queremos? Chega um momento que precisamos nos preencher de nós mesmos e dar limites para o que vem de fora. Somos constantemente tão restringidos, e até oprimidos, pelas convenções sociais que, muitas vezes, não sobra espaço para o contato com o que realmente existe dentro de nós, embora nunca seja tarde para isso. Esse movimento é necessário para impedir que sejamos mais uma peça repetida no jogo social, mais uma pessoa acuada e submissa, que apenas repete e repassa o script.

Cada um tem algo único dentro de si e é necessário conhecer e desbravar esse núcleo virgem e selvagem que nos habita e dar vazão a ele. No entanto, é preciso ter disposição e coragem para se aventurar nessa empreitada e assumir os riscos, mas seria um desperdício não se arriscar por isso. Pode ser que pessoas se afastem, pode ser que algumas perdas aconteçam e que mudanças ocorram, e isso pode parecer assustador em um primeiro momento, mas provavelmente aquilo que se vai não estava mesmo em consonância com os seus valores e seu ser essencial. Já parou para pensar o quanto a gente se apega a coisas/pessoas/situações que no fundo nem fazem tão bem para a gente? Muitas vezes a vida é cheia, mas vazia de sentido…

Ser a gente mesmo dá um frio na barriga, porque infelizmente nunca tivemos essa liberdade e não conhecemos o que é isso. É um processo longo e sem fim de primeiro redescobrir quem somos e ter coragem de deixar fluir – e isso paradoxalmente envolve remar contra a maré (do social). Envolve também deixar ir, se desvencilhar de muitas amarras que nos davam ilusão de segurança.  É um longo caminho de desconstrução e reconstrução… Não é fácil…  Não tem fim (eu acho)… Mas tenho convicção de que é gratificante e recompensador. Os riscos valem a pena… Que permaneça o que é verdadeiro e faz sentido para nós! Que a gente aprenda a afinar os sentidos para o que vem de dentro e aprenda a filtrar o que vem de fora. Que a gente crie e não apenas repita!

 

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