Uma loba foi treinada e adestrada
Ela perdeu sua natureza e sua força…
Se distanciou de sua alma e de seu corpo
Isso aconteceu a nós, mulheres!
A cada vez que fomos castradas
Cada vez que não nos ouviram, não nos olharam, não nos falaram
A cada vez que fomos desacreditadas
cada vez que nos calaram, nos limitaram, nos apequenaram
Cada vez que não nos deram expressão, não nos deram espaço
A alma livre e selvagem foi ficando acuada
Com medo, insegura e desconfiada…
Foram tantas marcas na alma
Que ela aprendeu a se esconder
Que ela aprendeu a se defender
Mesmo quando não precisava!
E, de tanto medo, passou a atacar
E a estar pronta para lutar
Mesmo quando não precisava!
Ou se escondia acuada
Ou avançava e feria
Tudo era uma ameaça!
Mas seu corpo cansou de lutar…
E foi ali que ela se viu…
Estava cansada e ferida…
Ferida na alma e ferida no corpo
Com medo de novas feridas,
Medo que atualizava dores antigas!
E foi então que parou…
Tratou de olhar suas velhas marcas
Passou a lamber suas feridas
Saliva que limpa…
Saliva que reconecta…
Saliva que cura…
Ela entendeu que o que faltava era olhar para si
Lamber suas feridas!
Confiar no seu poder de se refazer
De se cuidar e se curar
E foi quando percebeu que…
quando ela tem em si o seu próprio remédio, não existe ameaça
Quando ela sabe de sua própria força, não existe ameaça
Quando ela se abre para a vida, ela não está só
Quando ela confia em sua força, ela não precisa controlar
Ela pode recolher as suas garras
Liberar o peso de seus ombros… de suas costas…
Relaxar a tensão de cada músculo dolorido
E deixar que sua verdadeira sabedoria interna a guie
Uma loba saudável sabe descansar
Uma loba saudável sabe brincar
Ela sabe exatamente quando fugir
Quando se defender e quando atacar
Mas sabe também quando relaxar e se entregar…
Uma loba saudável sabe transitar!
Ela sabe exatamente o que precisa
Sua força natural e selvagem pode ser adormecida,
Pode ser esquecida, mas nunca destruída!
A força da mulher selvagem é -in-des-tru-tí-vel-!
Ela sabe criar, fazer morrer e se refazer
Portanto, se a ferida arder
Se o cansaço bater
Entregue-se à sua loba
Permita que ela cuide de você
Sobre a inspiração da imagem
Um dos reflexos que o medo e tensão da pandemia de covid-19 me trouxe na pele foi uma severa queda de cabelo, acompanhada de intensas coceiras no couro cabeludo, que formavam feridas. A 1ª profissional que me tratou levantou a hipótese de psoríase, o que para mim teve um peso enorme, principalmente por saber que é um problema de difícil controle, altamente ligado a questões emocionais e… auto imune.
O peso dessa palavra “auto imune” me sufocava porque desde nova minha mãe começou a lidar com uma doença auto imune que trazem muitas sequelas até hoje. O simbolismo da doença auto imune, que representa um ataque contra si mesmo, me dilacerava… me culpei… me martirizei… me vitimizei… Mas, não por muito tempo! Na verdade esse processo, apesar de muito intenso, foi até bem rápido porque uma das maravilhas do autoconhecimento é justamente não ser possuída muito tempo pelos complexos que nos afetam e ter um rápido retorno à consciência, de forma a olhar os problemas de uma perspectiva mais ampla. É como se as cegueiras fossem flashes momentâneos, pois a consciência está sempre de prontidão para socorrer o mais rápido possível.
Então, no meio da crise aguda e intensa de afogamento no problema, um fio de lucidez veio ao meu auxílio e eu pude ouvi-lo: “ei, peraí, então você vai ficar aí só chorando, se fazendo de vítima e se culpando? É justamente nesse momento que você não precisa se culpar e precisa se cuidar! E é você mesma que vai fazer isso por você!”. Eu tinha feridas reais na cabeça, mas também na alma, e aquele era o momento de olhar para isso, não do ponto de vista da criança que esperneia, mas do adulto que pode fazer algo por isso, que pode e deve olhar para o que está ferido e doendo para poder cuidar. Era preciso lamber minhas feridas ao invés de me lastimar por elas. E, assim, imediatamente me veio a imagem de uma mulher, encolhida em sua dor, sendo lambida por uma loba, seu lado selvagem, natural, instintivo…
Um lobo, quando se fere, se recolhe para cuidar de seus ferimentos. Ele sabe se curar. Ele sabe se cuidar. E era disso que eu precisava… Nesse mesmo instante me senti resgatando forças para olhar com carinho para mim, para me acolher, me colocar no colo e fazer o que fosse realmente melhor para mim. Assim, enquanto aquela imagem estava fresca na minha mente, peguei lápis e papel para materializá-la. Todo o resto foi surgindo depois… No início era só eu e a loba… depois veio mais uma loba, mas dessa vez uivando… depois a lua… a floresta… o poema!!!
Até hoje me arrepio quando lembro o processo desta arte…
No final das contas, lambi minhas feridas e tratei de me cuidar em todos os sentidos. Procurei outras opiniões e o diagnóstico não se confirmou, mas penso que tudo foi necessário do jeito que foi porque sempre existe um significado por trás de qualquer coisa que a gente vive… Para se expandir e uivar, é preciso, antes, aprender a se cuidar amorosamente. Só aquela que sabe reconhecer suas feridas e se recolher para lambê-las é capaz de colocar a verdadeira potência no seu uivo.
Sobre as artes:
Desenho em lápis grafite e poema, ambos realizados em 2020
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