Postado por

31
dez
2020

Já gostei muito de reveillón… Nessa data sempre tinha que ter alguma programação e, de preferência, bem festiva e com muita gente ou, pelo menos, ir à praia ver os fogos. Mas a verdade é que já tem uns bons anos que tem sido uma data indiferente para mim. Passei até a achar estranho tanta euforia e expectativa concentradas em uma data pontual só porque o ano vai mudar…

Passei a não me preocupar tanto no que ia fazer, mas sempre acabava surgindo uma programação ou, quando não surgia, ia ver os fogos com a família. Essa falta de sentido estava me incomodando, mas, mesmo assim, eu acabava sendo contaminada pela histeria coletiva enquanto o que eu realmente queria era, sei lá… Passar em um retiro ou algo do tipo.

Com tudo isso, tenho refletido sobre uma grande confusão que acontece: as pessoas confundem alegria e felicidade com euforia e excitação. Para muitos, só é considerado animado, feliz e alegre aquele que está eufórico e excitado, extravasando todo tipo de excesso. Será mesmo? Parece que no reveillón isso não é nem uma opção, é uma obrigação. Gera um estranhamento nas pessoas se você diz que vai fazer alguma coisa reservada e calma – ou simplesmente nada – nessa data. Afinal, né… Reveillón!!!

Posso estar chata??? Posso. Posso estar ranzinza??? Posso… Posso estar desanimada??? Posso. Isso tudo é o que geralmente pensam logo quando uma pessoa destoa da maioria e rema contra a maré. Esse é o preço. E, geralmente, estamos mais dispostos a suportá-lo com a maturidade.

O movimento de ir para fora é extremamente valorizado e estimulado pela sociedade a todo momento. Ir para dentro é tido como algo estranho, impróprio e marginalizado. Quantas vezes já não expressaram preocupação comigo apenas por eu estar quieta e reservada, na minha? Quantas vezes já não significaram isso como tristeza? Muitas! E o pior é que até uma certa altura eu me questionava e me perguntava se havia algo de errado comigo, e me perguntava se eu realmente estava parecendo triste. Às vezes chegava até ao absurdo de questionar se eu estava mesmo triste ou não! O movimento para fora é costumeiramente qualificado como algo bom, enquanto o movimento de ir para dentro é qualificado como algo ruim. No entanto, são movimentos neutros em si mesmo e até importantes, se aproveitados com sabedoria e consciência e no tempo apropriado.

Essa padronização que se impõe é inconsciente, silenciosa, cruel e contagiosa. Realmente, não seremos livres enquanto não refletirmos e questionarmos qualquer e cada ato, por menor e mais simples que seja. Não seremos livres enquanto fizermos apenas o que o grupo ou a sociedade espera de nós. Enquanto não nos conectarmos com aquilo que, de fato, queremos e não nos apropriarmos disso, nada feito, não seremos nós, seremos apenas aquilo que esperam de nós.

Para que não fiquem dúvidas, estar alegre e animado não é sinônimo de estar excitado e eufórico. E, para garantir, excitação e euforia não medem felicidade de ninguém. Segundo o dicionário Michaelis:

  • Alegria: “estado de contentamento ou prazer moral, júbilo, regozijo”;

  • Animação: “ato ou efeito de animar(-se)”; Animar: “dar alma ou vida a; animizar; dar ânimo, coragem ou valor a; dar ou adquirir animação, vigor ou vivacidade”;

  • Excitação: “ato ou efeito de excitar(-se); condição de estar excitado ou agitado; estado de irritação”;

  • Euforia: “sensação ou estado de intensa alegria, bem-estar e otimismo, nem sempre condizente com a realidade ou com o estado físico de uma pessoa; sentimento de alegria, felicidade e excitação exagerados, normalmente repentinos”

O que podemos perceber claramente é que excitação e euforia são estados exagerados, provocados repentinamente e, em geral, de fora para dentro. Já alegria e animação nos remetem a estados de presença, vida, alma, prazer, contentamento, satisfação, vontade e, portanto, algo genuíno, que vem de dentro para fora. Saindo da literalidade, eu me arriscaria a dizer que excitação e euforia são vazias de sentido, enquanto alegria e animação são preenchidos de sentido, filosoficamente falando.

Apesar do imperativo de excesso do reveillón, a virada de 2020 para 2021 tinha tudo para ser diferente. Vivemos um dos anos mais desafiadores em todos os sentidos, a pandemia veio, sacudiu o mundo e logo o fez parar. As estruturas foram abaladas e as certezas reduzidas a pó. Tivemos que nos recolher, nos distanciar daqueles que amamos e lidar com o medo e a incerteza do desconhecido – mais do que nunca. Contato físico, beijos e abraços viraram uma ameaça. Tivemos que nos adaptar a novos (e cansativos) hábitos. Encaramos muito de perto a finitude da vida. Foram milhões de mortes em todo o mundo… E ainda tivemos que lidar com o descaso de um (des)governo que fez piada com o sofrimento do povo.

O momento é de pensar no coletivo e não mais só em si mesmo, mas, infelizmente, nem mesmo em um momento de exceção, esse imperativo de ir para fora se desfaz. Não faltam festas, aglomerações e todo tipo de abuso. O que falta é reflexão, respeito, empatia, solidariedade e consciência moral, ética e coletiva. Ainda vivemos uma pandemia, embora muitos já tenham decretado o seu fim ou até mesmo tenham ignorado desde sempre sua existência, em viagens alucinadas de teorias da conspiração. Em uma situação de pandemia, atitudes individuais interferem diretamente no coletivo e muitas vezes são determinantes no agravamento do quadro.

Não é que a alegria de estar vivo diante de um caos desse não deva ser comemorada, não significa que não podemos estar felizes em função da situação mundial, não significa que não podemos desfrutar de belos momentos sem culpa de estar feliz. Não se trata disso. É possível e até conveniente fazer tudo isso, desde que de forma coerente com o cenário atual. Afinal, se só é possível ser feliz indo para fora, de forma impensada, irrefletida e automática, cometendo excessos, abusos e absorvido por excitação e euforia momentânea, temos aí o sinal de uma fuga incansável. Do que se foge tanto? O que tanto se busca fora que não percebemos dentro? Qual é a ameaça que existe dentro?

E justamente a virada desse ano tão intenso e pesado que foi 2020, finalmente, ainda que de forma meio enviesada, vou passar recolhida. Sem grandes eventos e sem muitas conexões a não ser comigo mesma. Dentro de casa. Dentro de mim. E, ainda assim, alegre, animada, feliz e em paz. Que seja uma quebra de padrão que permaneça. Eu realmente não acho que é a roupa ou o estado de espírito que a gente veste na virada que define como será o ano, mas sim os dias vividos ao longo todo o ano.

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2 Comentários

  • Flávia March
    01 janeiro, 2021

    Adorei sua reflexão! Séria, madura, coerente, só faz eu te admirar ainda mais.
    Já passei por situações iguais as que você comentou, de me perguntarem se eu estava triste, e eu apenas estava quieta, na minha, porém super feliz!
    Adorei ler os significados das 4 palavras, até “printei”. Buscar o real significado das palavras é uma prática super filosófica, né, e importantíssima para que a gente não se perca! Não se perca no significado que a gente dá à nossa própria vida mesmo.
    Bjos!

    • Maria Fernanda
      12 janeiro, 2021

      Fico feliz que tenha tocado seu coração! Beijo na alma!